Como alguém que sempre se encantou com as narrativas bíblicas, tenho uma afinidade especial pelos Evangelhos.
Eles não apenas contam a história de Jesus Cristo, mas também revelam diferentes facetas de sua personalidade e missão.
Dentre os quatro Evangelhos, Mateus e João me chamam atenção por suas perspectivas distintas sobre a vida e os ensinamentos de Jesus. Neste artigo, vou explorar essas diferenças e semelhanças, destacando o que cada um deles nos oferece em termos de compreensão espiritual.
O Contexto e a Autoria
O Evangelho de Mateus é tradicionalmente atribuído a Mateus, um dos doze apóstolos, e foi escrito com um público judeu em mente. Mateus era um cobrador de impostos antes de seguir Jesus, e essa transição de uma profissão vista com desdém para apóstolo é marcante em sua narrativa.
O objetivo principal de Mateus é mostrar Jesus como o Messias prometido nas Escrituras Hebraicas, conectando constantemente a vida de Jesus com profecias do Antigo Testamento.
Já o Evangelho de João, atribuído ao apóstolo João, um dos discípulos mais próximos de Jesus, foi provavelmente escrito para um público mais amplo, incluindo gentios e judeus. João apresenta uma visão mais teológica e filosófica da vida de Jesus, focando menos em sua genealogia ou cumprimento de profecias e mais na identidade divina de Cristo. Enquanto Mateus tenta provar que Jesus é o Rei dos Judeus, João se concentra em mostrar que Jesus é o Filho de Deus.
Estrutura e Estilo Narrativo
Mateus segue uma estrutura narrativa mais linear, começando com a genealogia de Jesus, passando pelo seu nascimento, batismo, ministério, morte e ressurreição.
Ele organiza os ensinamentos de Jesus em cinco grandes discursos, que lembram os cinco livros da Torá, estabelecendo Jesus como um novo Moisés. Essa estrutura é organizada e didática, quase como um manual para os primeiros cristãos judeus.
Em contraste, o Evangelho de João é notavelmente diferente. Ele não começa com o nascimento de Jesus, mas com uma poderosa declaração teológica: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” Desde o início, João estabelece a divindade de Jesus, algo que permeia todo o seu Evangelho. João organiza sua narrativa em torno de sete sinais milagrosos que Jesus realiza e em longos discursos teológicos, como o Sermão do Pão da Vida e a Oração Sacerdotal. Seu estilo é mais contemplativo e simbólico, convidando os leitores a uma reflexão mais profunda.
Retrato de Jesus
Se você já leu ambos os Evangelhos, provavelmente notou como cada um retrata Jesus de maneira única. Em Mateus, Jesus é frequentemente mostrado como um mestre e profeta, um novo Moisés que dá a Lei em um novo monte Sinai, o Sermão da Montanha. Ele é o Messias prometido, o cumprimento das profecias judaicas. Mateus enfatiza a autoridade de Jesus, como Ele interpreta a Lei, realiza milagres e desafia as autoridades religiosas de sua época.
João, por outro lado, pinta um quadro mais místico de Jesus. Ele é o Logos, o Verbo feito carne, que existe desde o princípio com Deus. Em João, Jesus faz uma série de declarações “Eu sou” (por exemplo, “Eu sou o pão da vida”, “Eu sou a luz do mundo”, “Eu sou o bom pastor”), cada uma revelando um aspecto de sua natureza divina. João enfatiza o relacionamento íntimo de Jesus com Deus Pai e sua missão de revelar a luz e a vida ao mundo. Aqui, Jesus é visto menos como um mestre da Lei e mais como a personificação do amor e da verdade divinos.
Milagres e Sinais
Os milagres desempenham papéis diferentes em Mateus e João. Em Mateus, os milagres de Jesus são atos de compaixão que demonstram sua autoridade messiânica e sua missão de restaurar o reino de Deus na Terra. Eles são frequentes e muitas vezes acompanhados de ensinamentos ou parábolas.
Em João, os milagres são chamados de “sinais” e servem a um propósito específico: revelar a glória de Jesus e levar as pessoas à fé. João escolhe apenas sete milagres para destacar, e cada um é profundamente simbólico, como a transformação da água em vinho nas bodas de Caná, que aponta para a nova aliança entre Deus e a humanidade, ou a ressurreição de Lázaro, que prefigura a ressurreição de Jesus e a promessa de vida eterna.
A Paixão e Ressurreição
Ambos os Evangelhos dedicam uma parte significativa à paixão, morte e ressurreição de Jesus, mas com ênfases diferentes. Mateus descreve esses eventos com um foco na realização das profecias e na culpa coletiva das autoridades judaicas, mantendo uma narrativa que é ao mesmo tempo factual e espiritual.
João, no entanto, enfatiza o controle soberano de Jesus sobre os eventos que levam à sua morte. Em João, Jesus é a figura majestosa que se entrega voluntariamente, com total consciência de seu destino.
A crucificação é apresentada como um momento de glorificação, e não apenas de sofrimento. Além disso, João inclui detalhes únicos, como o encontro com Maria Madalena no túmulo e o diálogo profundo entre Jesus e Pilatos sobre a verdade.
A Influência de Mateus e João na Tradição Cristã
A riqueza de perspectivas que Mateus e João oferecem sobre a vida de Jesus não apenas enriquece nossa compreensão pessoal, mas também moldou profundamente a tradição cristã ao longo dos séculos. Esses dois Evangelhos, em particular, influenciaram a teologia, a liturgia, a arte e a prática devocional de maneiras distintas, mas igualmente poderosas.
Mateus, com sua abordagem estruturada e suas raízes profundas na tradição judaica, tornou-se um dos Evangelhos mais utilizados na liturgia cristã, especialmente na Igreja Católica. O Sermão da Montanha, por exemplo, é um dos textos mais citados e discutidos ao longo da história do cristianismo.
Sua ênfase na ética e nos ensinamentos morais de Jesus ressoou fortemente com aqueles que buscavam uma base sólida para a vida cristã prática. Além disso, a genealogia de Jesus em Mateus, que liga Cristo diretamente a Abraão e Davi, reforçou a visão de Jesus como o cumprimento das promessas feitas ao povo de Israel, um ponto crucial para os primeiros cristãos de origem judaica.
João, por outro lado, teve um impacto profundo na teologia mística e contemplativa. A profundidade espiritual e as reflexões teológicas contidas em seu Evangelho influenciaram profundamente os Padres da Igreja e os teólogos místicos ao longo dos séculos.
A famosa passagem de João 1:1 (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”) tornou-se um dos textos centrais na doutrina da Trindade e na compreensão da divindade de Cristo. Além disso, a narrativa de João sobre a Última Ceia, onde Jesus lava os pés dos discípulos, introduz uma dimensão de serviço e humildade que se tornou um modelo para a liderança cristã.
As Diferenças como Riqueza
Uma das lições mais valiosas que aprendi ao comparar Mateus e João é que as diferenças entre eles não são contradições, mas sim expressões da riqueza e diversidade da fé cristã. Acredito que essa diversidade reflete a natureza multifacetada de Jesus e sua mensagem, permitindo que diferentes aspectos de sua vida e ensinamentos ressoem com pessoas em diversas situações e contextos.
Mateus nos dá a Jesus o mestre e profeta, ancorado na história e na tradição, desafiando-nos a viver de acordo com os preceitos de um reino de justiça e paz. João, por sua vez, nos apresenta um Jesus transcendente, cuja divindade brilha em cada palavra e ação, convidando-nos a entrar em um relacionamento profundo e transformador com Deus.
Reflexões Pessoais
Ao longo dos anos, voltei inúmeras vezes aos Evangelhos de Mateus e João, e cada leitura trouxe novas insights e provocações.
Em momentos de busca por clareza moral ou direção prática, Mateus sempre me ofereceu uma sabedoria sólida e direta. Por outro lado, nas minhas jornadas espirituais mais profundas, onde busquei compreender o mistério da fé e a natureza divina de Cristo, João foi meu companheiro constante, guiando-me por caminhos de contemplação e adoração.
Esses dois Evangelhos, em suas abordagens distintas, me lembram que a fé cristã não é monolítica, mas um convite a explorar e vivenciar a rica tapeçaria da vida e ensinamentos de Jesus. Eles me desafiam a não me contentar com uma compreensão superficial, mas a mergulhar mais fundo, a questionar, a meditar e, acima de tudo, a viver de acordo com a verdade que cada um deles revela.
Encerrando a Jornada Comparativa
Concluo esta comparação com a convicção de que tanto Mateus quanto João são essenciais para uma compreensão completa de Jesus Cristo. Mateus, com sua conexão com o Antigo Testamento e sua ênfase na justiça e no Reino de Deus, nos enraíza na tradição e na ética. João, com sua visão teológica e espiritual, nos eleva ao mistério da encarnação e da redenção.
Ler Mateus e João lado a lado é uma jornada que nos leva das profundezas da história à vastidão da eternidade, nos desafiando a abraçar a totalidade de quem Jesus é. Se você ainda não experimentou essa viagem através desses dois Evangelhos, eu o encorajo a fazê-lo.
Afinal, é na convergência dessas perspectivas que encontramos uma visão mais completa e transformadora do Cristo, o Verbo feito carne, o Messias prometido, e o Filho de Deus que oferece vida em abundância.